Professora na Etec de Franca (SP), Joana D’Arc Félix de Souza afirma que não desenvolveu estudo na conceituada universidade nos EUA. Documento que cita conclusão não é verdadeiro, diz.
A professora e cientista Joana D’Arc Félix de Souza, de 55 anos, admite que não realizou um trabalho de pós-doutorado na Universidade Harvard, nos EUA, mas nega que tenha falsificado qualquer documento para atestar a conclusão de um título obtido pela instituição.
“Eu não fui efetivada como aluna da universidade. Não tenho diploma de pós-doutorado, isso é um fato conhecido”, diz.
A declaração acontece em meio à repercussão após reportagem publicada pelo jornal “O Estado de São Paulo”, nesta terça-feira (14), que afirma que Joana usou um diploma falso para tentar confirmar a passagem dela pela universidade.
O G1 entrou em contato por e-mail com Harvard e aguarda manifestação da instituição sobre o assunto.
Joana ficou conhecida em todo o Brasil pela história de superação. Nascida em Franca (SP), filha de uma dona de casa e de um encarregado de curtume, ela se graduou em química pela Unicamp, onde também concluiu o mestrado e o doutorado.
Nos últimos anos, a pesquisadora recebeu vários prêmios em razão dos trabalhos científicos e sociais desenvolvidos na Etec Carmelino Correa Júnior, em Franca, onde atua desde 1998.
A chegada a uma das universidades mais conceituadas do mundo atraiu mais holofotes para a professora, que, além da pobreza, também enfrentou preconceito por ser negra.
Recentemente, o nome de Joana ganhou evidência após o anúncio da produção de sua cinebiografia, com a participação da atriz Taís Araújo.
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Joana D’arc Félix de Souza com alunas no laboratório da escola técnica em Franca, SP — Foto: ETEC/Divulgação
Joana conversou com o G1 por telefone. Ela está em Porto Alegre (RS), onde participa nesta quarta-feira (14) como palestrante de um congresso.
Em entrevista em maio de 2017, Joana contou as dificuldades enfrentadas até a chegada a Campinas (SP), na década de 1980, para cursar a graduação. Os diplomas atestam que ela se tornou bacharel em química, em 20 de dezembro de 1986. O título de mestre em química foi obtido em 3 de agosto de 1990. Já o de doutora em ciências foi emitido pela universidade em 27 de março de 1995.
Ela também afirmou que havia recebido um convite para desenvolver o pós-doutorado em Harvard, mas que não chegou a concluir o estudo porque teve que retornar ao Brasil em razão das mortes do pai e de uma irmã.
Nesta quarta-feira, a professora afirmou que não chegou a residir em Cambridge, na década de 1990, mas reafirmou que recebeu o convite para atuar em estudos desenvolvidos na universidade. A proposta foi feita após a publicação da tese de doutorado pela Unicamp na revista americana Journal of the American Chemical Society, em 1994.
Joana disse que atuou em parceria com o professor William Klemperer, professor do departamento de química e bioquímica de Harvard, mas no Brasil. Segundo a professora, foi Klemperer o responsável pelos contatos para levá-la aos EUA, porque ficou interessado no trabalho desenvolvido por ela com os resíduos do couro, uma vez que ele não dominava o assunto.
“Eu até comecei a fazer a pesquisa sob a orientação dele, eu cheguei a ir lá conversar com ele umas duas, três vezes, mas eu não fui efetuada como aluna de Harvard. Eu recebi as orientações dele. Não [fiz matrícula]. Foi uma coisa à distância. Eu fui tendo os resultados trabalhando com reaproveitamento de resíduos, emiti até patente dos resultados.”
O professor Klemperer morreu em novembro de 2017. Joana afirma que todos os contatos feitos com ele na época, em 1997, foram por telefone.
“O convite foi feito em conversas mesmo, a gente se falava muito por telefone. Se fosse nos dias de hoje, eu teria tudo registrado, mas, em 1997, a gente fazia muita coisa por telefone.”
Apesar da afirmação, consta na plataforma Lattes, sistema que reúne informações sobre trabalhos acadêmicos de estudantes e pesquisadores, que Joana realizou o pós-doutorado em Harvard, entre 1997 e 1999. No mesmo período, também consta que ela foi bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
A consulta feita pelo G1 nesta terça-feira consta que a última atualização foi feita no dia 15 de abril deste ano. Procurada, a Capes informou que “não localizou em seus arquivos nenhum registro de que Joana D’arc Félix de Souza tenha sido bolsista da instituição”.
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Currículo Lattes da professora Joana D’Arc Félix de Souza — Foto: Reprodução
Joana argumenta que há um equívoco no preenchimento dos dados. As atualizações na plataforma são de responsabilidade do próprio autor.
“O currículo Lattes é por causa dessa coisa à distância. Eu vou até corrigir lá, vou colocar acompanhamento à distância, vou corrigir essa falha. Não foi pela Capes, foi pelo CNPq. Da Capes está errada, é CNPq. Do pós-doutorado, eu vou por acompanhamento à distância. Foi um mal entendido.”
Nesta terça-feira, a reportagem do jornal “O Estado de São Paulo” citou que, em 2017, Joana enviou um e-mail com um diploma que teria sido emitido por Harvard, para atestar a conclusão do pós-doutorado. Segundo a publicação, a instituição informou que não emite diploma para pós-doutorado. Uma das assinaturas no documento é do professor emérito de química em Harvard Richard Hadley Holm. Ao jornal, Holm declarou que o certificado é falso.
A pesquisadora confirma que o documento, ao qual o G1 teve acesso, não tem autenticidade e sustenta que ele foi encaminhado erroneamente ao jornal por um aluno que a ajudava com e-mails. Segundo Joana, o ‘diploma’ foi elaborado para uma encenação na Etec.
“Os meninos fizeram uma peça, uma encenação, de como seria estudar em Harvard, fazer um pós-doutorado em Harvard. Eles encenaram um certificado e estava tudo lá nos documentos do e-mail e ele mandou isso junto. Mas, depois, eu entrei em contato [com o jornal]. Na hora que eu vi que tinha ido, eu entrei em contato para falar que não era válido. No entanto, ele [jornalista] não falou mais nada.”
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Documento que cita conclusão de pós-doutorado de Joana D’arc em Harvard não tem validade, diz professora — Foto: Reprodução
Ao tomar conhecimento da reportagem, Joana D’Arc escreveu aos seguidores em seu perfil de uma rede social. “Cuidado com as inverdades publicadas! Infelizmente, o preconceito contra negros (as) ainda é muito real. Será que um negro (a) não pode estudar? Logo tentam derrubar.”
Joana teme que, com a repercussão, o trabalho desenvolvido com os alunos da Etec seja afetado e que as pessoas passem a duvidar da sua trajetória de vida.
“Eu tenho medo que a minha carreira seja prejudicada, que o trabalho que eu faço com os meus alunos hoje seja interrompido lá na escola. Eu motivei os professores, eu fiquei conhecida lá na escola. Várias pessoas ficaram motivadas a fazer projetos de pesquisa. Felizmente, eu consegui motivar os professores a terem esse olhar da vulnerabilidade social. Eu tenho medo de morrer o trabalho, eu me apaixonei tanto por esse trabalho de transformação social. Eu não sei como vai ser amanhã. De repente, as pessoas podem até começar a duvidar que estudei na Unicamp, que tenho doutorado.”
Em nota, a assessoria de comunicação do Centro Paula Souza informou que a professora Joana D’Arc em nenhum momento apresentou à instituição certificado de pós-doutorado. “Ela foi contratada mediante concurso público em que entregou os diplomas de bacharelado, mestrado e doutorado em Química pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)”, informou.
Atualmente, Joana trabalha no desenvolvimento de um tecido anti-microbiano para reduzir os riscos de pacientes contraírem infecção hospitalar. Ela também atua em projetos de iniciação científica voltados aos alunos da Etec.