Usando o mesmo texto, os magistrados negaram a penhora dos bens em todos os casos. O motivo citado para a decisão foi o artigo 36 da lei de abuso de autoridade. O trecho afirma que é crime:
- Decretar, em processo judicial, a indisponibilidade de ativos financeiros em quantia que extrapole exacerbadamente o valor estimado para a satisfação da dívida da parte e, ante a demonstração, pela parte, da excessividade da medida, deixar de corrigi-la.
- Pena – detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa.
O texto que aparece nas decisões dos dois magistrados faz uma crítica à lei de abuso de autoridade e afirma que ela é “incompleta” e tem constitucionalidade “questionável”.
“O tipo penal acima transcrito é aberto quanto às expressões exacerbadamente e pela parte (não esclarece se autor ou réu), isto é, é espécie de lei penal incompleta, que depende de complemento valorativo, feito pelo intérprete da norma, em função de permissão legal.”
Trecho de decisão judicial que cita a lei de abuso de autoridade — Foto: Reprodução/TJDF
Os juízes afirmam ainda que não têm como garantir a correção rápida dos valores penhorados, para evitar excessos. Isso porque é o credor quem informa o valor da dívida e pode acabar passando um total maior que o devido.
“Na prática diária, onde o juiz é responsável pela condução de milhares de processos, nem sempre é rapidamente visualizado e corrigido o exagero desnecessário de tais gravames”, dizem as decisões.
Já no Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF) – que compreende os estados do Rio de Janeiro e do Espírito Santo – o entendimento foi diferente. Em dez casos encontrados pela reportagem, os juízes Marianna Carvalho Belotti e Eduardo Oliveira Horta Maciel também citaram a lei de abuso de autoridade. No entanto, ao invés de indeferir os pedidos de penhora de bens, os magistrados solicitaram informações sobre o valor atualizado do débito.
Sede do Tribunal Regional Federal, da 2ª Região, no Centro do Rio — Foto: Divulgação/TRF
No Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), o juiz Evandro Carlos de Oliveira negou pedido em ação de improbidade administrativa, também citando o artigo que proíbe penhora de valores excessivos. O processo corre em segredo de Justiça.
O G1 tentou contato com os juízes por meio do TRF-2, do TJDFT e do TJSP. O primeiro não respondeu até a publicação desta reportagem. Já o TJSP afirmou que “magistrados não se manifestam sobre processos, de acordo com o artigo 36 da Lei Orgânica da Magistratura”.
O TJDFT disse que os juízes foram consultados, mas não quiseram se posicionar.
Arquivamento de inquérito
A reportagem também encontrou decisão de um juiz do Tribunal Regional Eleitoral de Tocantins (TRE-TO) que arquivou um inquérito aberto pelo Ministério Público contra a prefeita da cidade de Bernardo Sayão, Maria Benta Azevedo, com base na lei de abuso de autoridade.
Tribunal Regional Eleitoral do Tocantins (TRE-TO) — Foto: Divulgação/TRE-TO
A investigação foi aberta após o recebimento de denúncia anônima pelo MP. No entanto, o próprio órgão reconheceu que as acusações eram genéricas e que não foram encontradas provas contra a prefeita.
Na decisão, o juiz Jacobine Leonardo afirma que o arquivamento é “medida que se impõe, sob pena de configuração do art. 27 da lei 13.869, de 05 de setembro de 2019”. A norma diz que é crime:
- Art. 27. Requisitar instauração ou instaurar procedimento investigatório de infração penal ou administrativa, em desfavor de alguém, à falta de qualquer indício da prática de crime, de ilícito funcional ou de infração administrativa:
- Pena – detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
O que dizem especialistas
Para o professor do Centro Universitário de Brasília (Uniceub) Thiago Machado, há certo exagero na preocupação de alguns juízes, principalmente nos casos em que o pedido de penhora foi negado apenas com base na lei.
“Não é crível que um juiz da capital federal não consiga fazer uma interpretação da norma. A gente sabe que não existe crime se não existir intenção. Então se eles não pretendem causar danos à parte, não há crime.”
Segundo o especialista, a lei vai exigir maior cuidado dos magistrados em alguns momentos, mas não é rígida a ponto de justificar essas preocupações.
Thiago Bottino — Foto: Reprodução/GloboNews
A opinião é a mesma do especialista em direito constitucional da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Thiago Bottino.
“O juiz não deveria se preocupar se der uma decisão clara e que defina o valor correto para penhora.”
O especialista, no entanto, tem uma crítica à norma. “A lei cria mais crimes, mais penas. Precisamos perder o fetiche por direito penal e utilizá-lo apenas nas situações mais graves”, afirma.
G1